quinta-feira, 8 de julho de 2010

Paternidade

     A menina chegou uns minutos antes do pai. Jogou sua bolsa na cama, alguns objetos se espalharam até rolar para o carpete verde. Ela sentou-se, inspirou o ar seguro de seu quarto e passados alguns segundos na escuridão, resolveu levantar e se preparar para dormir. Já estava organizando os afazeres na cabeça, como fazia de costume: tomar banho, fazer uma limpeza no rosto, comer uma fruta, escovar os dentes, arrumar a bolsa para o dia que estava pra nascer. Seu pai chegou, no momento em que ela saia do quarto, após ter arrumado mentalmente seus deveres pessoais.
-Olá, Pai!
     O silêncio de poucos minutos foi quebrado com o barulho da televisão: o controle já estava nas mãos velozes do pai. A garota, observadora, viu o homem tão conhecido jogar o controle remoto no tapete, tirar os sapatos, afrouxar a gravata. Viu seu ar cansado desabando no sofá.
     Ela sentiu vontade de trabalhar mais e estudar mais pra dar a vida relaxada que este homem nunca teve. Ficou um pouco emocionada por pensar no quanto ele ficaria feliz em morar numa casa de praia, viajar semestralmente, trabalhar só de consultoria, já que nas veias da família o espírito workaholic era vital. Desde que tinha cumprimentado o pai com um recatado “olá”, ficou encarando aqueles olhos, enquanto sonhava o sonho dele.
     Porém ele não a via. Não conseguia enxergá-la (estranhamente já há algum tempo). Ela se desesperou por esperar tanto tempo por um simples olhar, e falou um pouco desconcertada:
-Pai, você nem olhou pra mim!
     Ele ainda hesitou alguns segundos por estar concentrado em se despir e ver o noticiário até encontrar os olhos de sua filha:
-Amanda, estou cansado, estressado.
     Amanda murchou, sentiu saudade de amor. Percebeu que ali não era mais seu lugar, percebeu que já pertencia ao mundo. Liberou suas asas inexperientes, esfriou o coração e voou para bem longe.


© Escreva carla, escreva
Maira Gall